Primavera de 1952, Fazenda Biotônico do Fervedor do Anteiro, da então Capital do Território do Iguaçu, década de 40.
Manhã bem cedo, passarada cantando e voando
Olívio, piá ginete, bem treinado na lida do gado, recebeu a incumbência de vigiar a vaca Mimosa, que andava escondendo o leite: o apojo do bezerro. Era boa de leite já estava na terceira cria, porém todos os bezerros que pariu, morreram de fome. Definhavam e sucumbiam; viu-se por aquelas plagas que esta vaca mansinha rejeitava os filhotes. Foi então que Ulisses - recém casado e protetor de Olívio - determinou que pastoreasse a vaca irresponsável, para descobrir porque essa impiedosa mãe escondia o leite da cria recém-nascida. Olívio (Olivil da Silva), que por essa época era jóquei da potranca meio-sangue Castanha, a mais veloz do Anteiro, encilhou o bragado com a casquinha (selinha de corrida), forrou com o pelego branco, apertou a barrigueira do cavalo e com um breve salto, montou no beiçudo ligeiro que o conduziria para aquela missão. Missão essa que iria imortalizar sua vida de peão ginete... descobriria como a cascavel mamava na vaca.
Após a ordenha, as vacas são soltas no pasto com os bezerros; é quando eles mamam e se nutrem do apojo que elas “milagrosamente” escondem para alimentar seus filhos. Mas não era o caso da Mimosa. Seu rebento já nem aguentava andar; fraco e desnutrido, permaneceu na estrebaria para tomar mamadeira. Essa rejeição já era do conhecimento geral, assim, todos se mobilizaram para salvar aquela vida ameaçada. Bastava matar a fome desse mamador frustrado, o que foi feito até aquela criaturinha pegar novamente o peito.
Andando a cavalo ao passo, acompanhavam a Mimosa, a distância; o menino Lívio e o vaqueiro roceiro Arsemiro, com sua “caneta torta” nas costas (uma foice super afiada). Subiam as terras cobertas de pastos verdes: “Quicuio”, Colonião, entre outros, e os campos dourados de Barba-de-bode. O roceiro ia fumando seu palheiro e falando para tomar cuidado com a possibilidade de encontrarem cobras no rastro da Mimosa. Seguiram rumo a lateral do Morro dos Rodrigues, mais precisamente, lado oeste, nas terras adquiridas do Senhor Osvaldo Bêe. Ali naquela encosta o Arsemirinho ficaria roçando a capoeira de vassourinhas que cobriam a grama verde, de cima de um ponto alto, onde observava toda a manobra que o piá, tateando, ia seguindo o rastro deixado pela vaca. Ao chegar na Tapera dos “Bêe”, nas proximidades do poço d’água potável, apeou, puxou o bragado pelo buçal e amarrou no palanque da arueira (que resistia entre os escombros do abrigo daquela cisterna que matou a sede de muitas e muitas pessoas).
Quieto, andava devagar, ouvido atento, esperando escutar o piado da cobra ou outro sinal que a levasse à vaca. De relance, num espanto hipnótico, viu a vaca correr. Ecoou seu grito de socorro para o Arsemiro que estava roçando, ali perto, e que rapidamente, veio em seu socorro. Nesse breve tempo ouvia aquele bicho peçonhento bater o guiso e balançar o chocalho que carrega no rabo, advertindo aos passantes que estava irritada. (É a maneira como a cascavel mostra sua presença e espanta os intrusos para não lhe fazerem mal, evitando assim o confronto).
O menino Olívio estava ao alcance da víbora e morto de medo dela que já armava o bote para inocular o veneno mortal. Foi quando chegou o Arsemirinho, que tinha destreza de sobra. E, numa peleia só, a dança com a serpente que estava do lado do Olívio começou; a cascavel quando se viu em perigo, regurgitou o leite da vaca em cima do menino, cobrindo-o de alto a baixo. O piasito, que tremia mais que vara-verde, ficou então envolto por aquela gosma branca e fétida.
Com a surpresa e o susto, acabou engolindo o “leite da cobra”. Foi nessa hora que ele deduziu que ela havia mamado na vaca. Esse foi o modo como a cascavel demonstrou toda sua astúcia, liberando o leite ainda quente, que estava digerindo, para recobrar a agilidade normal, e tentar em vão escapar das foiçadas que a degolaram. Agora sua cabeça saltitava em torno do cupinzeiro (plataforma para a peçonhenta tomar banho de sol e realizar prazerosas chupadas nas tetas da vaca).
Vejam como foram deliciosas essas mamadas, a ponto da vaca enjeitar o próprio bezerro. Belo mutualismo de animais, tão distinto nas espécies. A cobra se fartava com o delicioso apojo do bezerro, e a vaca tinha verdadeiros orgasmos, pelas carícias e chupadas deste “Crotalus terrificus”... uma inusitada experiência de amor e paixão.
Quando Olívio viu a cabeça da cobra pulando, constatou que se tratava de uma cascavel-de-quatro-ventas. Só então saiu do estado hipnótico em que se encontrava e, rapidamente estimou o tamanho da cobra: cerca de 1,80 m, com um guiso de 12 segmentos (anéis ocos que ressoam com as bolinhas em seu interior).
Mas o que mais marcou na mente do piasote foram as duas enormes presas de veneno, fixas na parte frontal da boca; e os dentes sólidos em ambos os maxilares.
Arsemiro contou os anéis do guiso e afirmou, categórico:
- piá, essa cobra tem 12 anos.
É sabido que a cobra cascavel muda a pele várias vezes por ano, e cada vez que muda, é acrescentado outro segmento ao guiso. Portanto, o ano para a cobra não é contado em dias e sim por trocas de pele. Hoje sabemos que aquela cascavel-de-quatro-ventas trocou a pele 12 vezes.
Arsemiro arrancou o facão três listras da cintura, tirou o guiso e presenteou o menino Olivil: Naquele dia ele tinha aprendido muitas lições de vida mesmo estando morto de medo da cobra que o vaqueiro matou. E, agora, lhe ocorria uma preocupação: ter tomado o veneno da cascavel junto com o leite engolido à força.
Mas Arsemiro acudiu, como um conselheiro habilidoso:
- o que não mata, engorda! E completou:
- Ivo (às vezes chamavam Olívio assim), irá se regenerar, terá muitos filhos, vai pecar muito ainda. Mas o que você testemunhou hoje, aqui comigo, você levará para a eternidade. E tenho certeza que Nho Lício imortalizará essa bravata em suas anedotas e causos, que passarão de geração
E como era primavera, eu procurava pela cobra macho, pois sabia que estava por perto, para o acasalamento. Pela agressividade, essa cobra provavelmente estava no cio. E alerta o roceiro velho: - tenhamos cuidado! pois, o macho certamente virá, para vingar a morte da companheira.
O Olívio nos informou que cobras não piam, mas mamam. Não picam com a cauda, mas seu guizo tem veneno.
Olívio, hoje eu sei porque toda nossa família gosta de usar bota de cano longo até o joelho. É para evitar mordedura de cobras; os dentes das víboras não atravessam o couro e o bote não ultrapassa a altura dos joelhos. E você, naquela fatídica manhã estava ao alcance do ataque, a uma distância de dois terços do comprimento do ofídio; limite para o bote em um só impulso; distância ideal para cravar as presas e injetar o veneno.
Grandes lições a cascavel mamadora nos deixou:
- O sinal de advertência para anunciar sua presença e nos alertar sobre o perigo iminente que nos rodeia... uma estratégia de sua comunicação.
- A tática do contra ataque, esse inflado vômito do leite que estava pesando em sua enorme goela, deixando-a leve e flexível para recobrar o seu potencial de ataque/defesa.
- O poder da regeneração, pela troca do couro e crescimento a partir da cauda como os lagartos. É nesse atributo que nos tornamos conscientes do poder de mudança e evolução que todos nós temos.
O último ensinamento ficou demonstrado pelo acontecimento em si, que faz a gente repensar nossas vidas quando estamos em situações de perigo, pensar na família, prometermos sermos cada dia melhores, imortalizar fatos como esses, já que para nós todos aquele evento jamais será esquecido.