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Carta a um Peão
Carta a um Peão

Brasília, Df, 24 de março de 2010.

 

 

 

Para que todos saibam como é estar entre a vida e morte vou relatar inicialmente o penúltimo dia de um peão do mato, chucro, matreiro, trabalhador braçal, que amava a vida com seus mistérios, dramas, paixão recolhida, amores de cabarés, citando-se estórias e bravatas, das caçadas de onças pintadas e das pescarias no Rio Araguaia. O Zé Tubarão, sempre foi um roceiro de pouca prosa e muita ação, quando bebia pensava com o trinta e oitão. Na zona sempre tirava uma boa fornada, pois, o dinheiro na guaiaca nunca lhe faltou. Este último encontro aconteceu numa sexta-feira, 19 de março de 2010, por volta de dez horas da manhã, entre o peão moribundo e seu brabo patrão coronel, no Hospital de Doenças Tropicais ( HDT), em Araguaína-TO:

-´´Ao chegar no HDT, fui embargado logo de cara pela recepcionista, porque as visitas só eram permitidas à tarde, porém, solicitei a presença da Assistente Social, foi então que me conduziram até a Seção dela, eu e o veterinário Márcio, que também testemunhou essa triste estória. Enquanto aguardamos a vinda da Assistente que se encontrava em outras missões, conversamos com a Secretária e a Nutricionista, que logo se sensibilizaram o caso Tubarão, pois, na noite anterior tinha vomitado muito sangue e não passava nada bem. Então nesse ínterim liguei do meu celular para o celular da Dona Terezinha, irmã do Zé Tubarão, que desceu rapidamente da enfermaria para a sala da assistente social no térreo. Essa senhora forte e corajosa logo que me viu me abraçou chorando, implorando pelo apoio nesta hora fatídica para toda a família. Como sou uma manteiga derretida não me contive e chorei também. Logo vi que o caso era sério, pois, aquela senhora dura de queixo, já tinha aberto os queixos. E eu rapidamente me contive, assim que adentrou a Assistente Social, que com muita simpatia me autorizou a fazer esta última visita a um enfermo que estava próximo de bater as botas.

Passou um breve filme desses últimos anos de convívio com o peão preferido, fiel, honesto, trabalhador, zeloso, sábio certas horas, enfim era o meu guarda-costas, que cuidava ao mesmo tempo, da segurança da Fazenda Retiro.

Quando penetrei na enfermaria, vi um peão todo debilitado, porém arrumado, não estava com as vestes do hospital, e sim com as roupas de as´da, para ver as meninas, calças ´´jeans``, camisa branca de manga comprida e uma sandália havaiana nova, porque não pode dar um ´´repeleco`` no ´´pisante``. A sua expressão era de tristeza e saudade, queria falar mas logo perdia a voz e o fôlego, tremia, vinha a tosse e o pigarro, foi então que apesar dele tentar esconder, vi sair sangue de sua boca. Como não tinha mais jeito, ele me confessou que escarrou muito sangue, e que remédio nenhum tirava aquela insuportável dor em seus pilmões, que o fogo do álcool, da cachaça e a fumaça dos cigarros engoliram o seu pouco ar. Me falou da angústia que sentia, do sufoco que a falta de ar lhe trazia. Da dor que não passava. Mas o que mais lhe doía era não poder falar com ninguém das coisas ruins que fizera em vida, sempre aconteceu quando bebia, que de fato lá dentro ele se arrependia. Já tinha se perdoado e perdoado quem lhe ofendia. Porém espera por mim, seu patrão, que seu final de vida lhe confiaria. A tristeza me abateu, vi o Zé definhar bem a meu lado e eu mesmo com todo meu dinheiro nada podia fazer, a não ser lhe dar um Santinho de Nossa Senhora Aparecida, e pedi: reze, chore, desabafe, perdoe, peça perdão, agradeça e converse com Deus, que ele irá lhe perdoar, terás com certeza uma travessia de luz e chegará num lugar onde não há dor, nem riqueza  e nem pobreza, não há angústia e nem tristeza, terá um lugar com muita água e ar, respirará com prazer e ficará longe do fogo ( álcool ) e fumaça que te acompanharam nesta vida. Não é hora para culpar ou se culpar, é hora de se arrepender e perdoar. O caminho está livre, aí fiz o sinal da cruz em sua testa, abençoando mais aquela criatura de Deus. O Zé ouvia e chorava, assim comoveu toda aquela enfermaria. Foi neste momento que sua irmã de sangue Terezinha lhe entregou seu último ordenado, e com muita dificuldade apertou o seu dedão na Folha do Contra-Cheque, deixando sua impressão digital, recebendo seu último salário.

Falei do pomar bonito que ele deixara na Fazenda Retiro, as bananeiras, todas com cachos, já prontos para serem colhidos, os limoeiros carregados de frutas, e demais arvoredos estão em floração. Então, ele me perguntou? ´´têm crianças para comer essas frutas?`` Eu lhe respondi têm sim uma meninada e está vindo mais por aí, o novo vaqueiro é um rapaz jovem, casado e arrojado. E na fazenda está tudo certo.

Aí então o diligente Tubarão me repetiu:

-Coronel agora eu vou passar farinha na porca; não tem jeito mais; eu joguei a farinha fora, mas quando dei  fé o saco já estava cheio de novo. Coronel gostei de sua poesia para mim, sé estava, esperando o senhor. E até agora pouco não sabia o que fazer. O senhor me deu forças nesta Travessia Final, hoje eu sou o boi de piranha, não chegarei amanhã na outra margem, mas essa travessia, todos nós um dia iremos atravessar. Há muito tempo que me arrependi de tudo que fiz, a ´´marvada`` da pinga, foi minha inseparável companheira de infortúnio e o cigarro foi o vício que me levou a esta morte lenta e traumática que me angustiou. E é por isso que sofro tanto, tanto que a morte será um descanso para mim.

Recusei-me a ouvir seu testamento, pois, não acreditei no desfecho dessa história, achava que o pobre Zé estava sendo pessimista, nesta hora eu não queria perder o otimismo, mas o que ele queria me mostrar era a realidade nua e crua que ele estava vivenciando.

Então, abracei-o chorando, e ele balbuciou duas palavras: - Obrigado...! Desculpe...!

Em seguida eu quis saber a razão daquelas palavras. Ele prontamente com a voz trêmula e tremendo me respondeu, sem clamar ou reclamar pelo seu tormento;

- Obrigado amigo por me apoiar nesta última travessia, é o fim de minha carreira. O gigante do senhor tomba, chora e se compadece diante da única certeza, a MORTE;

- desculpe-me, patrão, por não conseguir envelhecer junto com o senhor, Coronel, sei que sentirá saudades de nossas gargalhadas, risadas boas, boas como as pitadas que dei na vida toda. Olha patrão, muita coisa vou deixar de fazer, mas levo comigo que o senhor nunca me enganou, foi o patrão que eu pedi a Deus, foi assim desde o dia que o senhor apontou e bebeu do meu café, no meu paiol, eu sabia que iria trabalhar para o senhor até morrer.